Tragédia no Sul completa um mês nesta quarta e alerta cidades brasileiras para novos desastres

Estado enfrentou elevação recorde do Guaíba, o drama dos mortos e desaparecidos, a angústia dos resgates de famílias inteiras ilhadas, além do desabastecimento de água e energia

29/05/2024 as 11:13
A maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul completa um mês nesta quarta-feira. Menos de 24 horas após a noite de terror do dia 29 de abril, a Defesa Civil gaúcha já informou sobre os primeiros cinco mortos e 18 desaparecidos registrados por conta das fortes chuvas. Àquela altura, já havia quase 200 desabrigados, em 77 municípios — a maioria na região central do estado. De lá para cá, a tragédia só cresceu e a destruição se expandiu. Hoje, ao menos 169 homens, mulheres, idosos e crianças já perderam a vida pela catástrofe, além de 50 com parada desconhecida. O governo estima que 2,3 milhões de pessoas tenham sido afetadas até agora pela crise, em 471 cidades. Há mais de meio milhão de desalojados e 48,7 mil moradores em abrigos. Veja algumas das situações dramáticas enfrentadas nestes 30 dias.

Há exato 1 mês, na noite do dia 29 de abril, o Rio Grande do Sul registrou duas primeiras mortes provocadas pelas chuvas, que se tornariam a maior catástrofe climática da história do estado. Nelson Schaffer, de 62 anos, e Delmar Waldomiro Sander, de 69, estavam a bordo de um carro que acabou arrastado pela enxurrada, na região do Morro Azul, em Paverama. O veículo, um Gol prata, ficou completamente destruído. Hoje, a tragédia já contabiliza 169 mortos.

Cientistas, engenheiros e urbanistas já sabem qual é o roteiro para evitar que novos temporais provoquem um desastre tão grave quanto aquele que deixou mais de 160 mortos no Rio Grande do Sul). O passo a passo da prevenção começa com estudos detalhados das áreas de risco no estado, passa pela elaboração de um plano de ação com as medidas mais e menos urgentes, e segue com a realização de obras e outras medidas de prevenção.

Paralelamente, as autoridades também precisam traçar planos de contingência para que os órgãos públicos e a população saibam exatamente o que fazer quando vier a próxima chuva forte. Os pesquisadores ouvidos pela reportagem apontam que entre as principais lições das enchentes no Sul está a constatação de que é urgente mudar a maneira como ocupamos as bordas de arroios, córregos, rios e lagos. Em suma, significa mudar a forma como as cidades foram construídas ao longo do século 20.

"Os cursos d'água sempre representaram um obstáculo à urbanização: as cidades cresceram, se desenvolveram, e chegam quando na beira do rio era canalizado, desviado, tamponado ou assoreado. E obviamente isso vai gerar um impacto", diz o arquiteto e urbanista William Mog, pós-doutorando na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Para os especialistas, as margens de rios e outras áreas alagáveis ??terão de ser desocupadas, áreas verdes ampliadas, as diques e comportamentos que protegem a região metropolitana de Porto Alegre deverão ter sua manutenção intensificada e o monitoramento climático e os sistemas de alerta para desastres aprimorados.

A receita para o desastre das enchentes é conhecida há décadas pelos especialistas. A pavimentação de concreto e asfalto faz com que a água seja canalizada com mais velocidade, facilitando o transbordamento em vez de amortecer a chuva (o que é feito pela vegetação e pelo solo). Canalizações malfeitas, barreiras e aterramentos --que se multiplicaram na capital Porto Alegre-- podem agravar o problema, empurrando as águas para áreas vizinhas.

Mog é assessor técnico em área de habitação e urbanismo do Ministério Público gaúcho. Ele diz que é necessário encarar rios e córregos "não mais como um obstáculo, mas como um parâmetro principal para se pensar a urbanização, ou seja, construir uma cidade a partir do rio e respeitando o rio".

Isso pode implicar, nos casos mais drásticos, na remoção de bairros ou cidades quase inteiras. Essa medida já foi discutida em municípios como Roca Sales e Muçum. À beira do rio Taquari, ambos foram atingidos por três temporais no último ano.

A remoção é uma solução extremamente cara que leva anos para ser concluída, sendo necessário começar pelas áreas de maior risco a inundações e penetração. Segundo o engenheiro Carlos Tucci, professor aposentado do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, pode custar pelo menos R$ 20 mil por família. Mais para isso, é necessário garantir que essas regiões não sejam reocupadas de forma irregular --como acontece com frequência por falta de acesso da população mais pobre à moradia.

“Fica muito claro que sempre a população de baixa renda é mais afetada, e isso chama atenção para um instrumento [de política pública] muito importante, que é a regularização fundiária”, diz a arquiteta Heleniza Campos, professora do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional da UFRGS. "Muitas vezes essa regularização acaba se voltando contra a população, porque ela vai acabar ficando numa área inconveniente para moradia."

Outro consenso entre especialistas é que nada disso é realizado se os municípios trabalharem sozinhos, isolados. Como as bacias hidrográficas abrangem regiões inteiras, é necessário coordenar várias prefeituras para que os projetos funcionem.

Campos chama atenção para a necessidade de retomar o planejamento metropolitano que, segundo ela, foi sucateado nos últimos anos, culminando em 2017 com o decreto do fim da Metroplan, fundação que coordenava a integração de saneamento, ocupação do solo e transportes, entre outros serviços de Porto Alegre.

“Enxugando o corpo técnico, reduzindo a capacidade de serviços e de manutenção da infraestrutura, você vai colocar a população numa situação de risco aos poucos”, diz a professora.


ALERTA CLIMÁTICO PRECISA SER DIDÁTICO

O professor Carlos Tucci espera que o desastre gaúcho sirva para colocar a gestão de inundações no centro de debate público brasileiro. Ele trabalha numa proposta de reforma dos sistemas de prevenção contra enchentes da capital gaúcha. O projeto inclui inspeções nos diques e comportamentos, recuperação do sistema antienchentes e revisão da infraestrutura da cidade.

“Até hoje não há acessos decentes para fora da cidade, e é preciso planejar para que hospitais, escolas e postos de saúde estejam em locais seguros”, diz Tucci. Já não há monitoramento de chuvas e níveis dos rios, ele diz, há espaço para uma reformulação que traga informações mais críticas para os moradores. Idealmente, informações de previsão do tempo, da topografia, das áreas de risco e do nível dos rios seriam integradas para prever quais endereços têm mais chance de serem atingidos.

"No Brasil, temos previsão de chuva, mas não do nível da água nos locais de interesse. Como alguém vai saber se com 100 mm ou 200 mm de chuva, o nível da água vai chegar na casa dele?", questionou ele.

Esse monitoramento integrado é uma das mudanças mais difíceis de se alcançar, segundo o meteorologista Giovanni Dolif, coordenador-geral substituto de Operação e Modelagem do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). “Os modelos não enxergam a formação de cada nuvem de tempestade”, ele diz.

Aumentar o número de locais monitorados está nos planos do Cemaden, responsável pelo principal serviço de alertas para o risco de inundações, perfurações e secas extremas no país --hoje são pouco mais de 40 municípios gaúchos que recebem o serviço do órgão federal, embora o trabalho seja complementado por serviços estaduais e municipais.

Dolif também cita a necessidade de treinamento de equipes nos municípios e melhoria dos dados que são coletados pelo governo. "É preciso de capacitação. Tem muitos municípios que não sabem direito o que fazer quando chegam os alertas, alguns sequer têm Defesa Civil. Os municípios precisam se estruturar."



Fonte: oglobo.globo.com e otempo.com.br